O grande amor do engenheiro Enzo eram seus carros de competição. Ele
deixava claro que só fabricava carros de rua (e neles colocava a alma de
seus modelos de pista) porque precisava financiar seu plantel de
corrida. O símbolo do Cavallino Rampante, e o nome dado à equipe –
Scuderia Ferrari, do italiano “Haras Ferrari” – mostram o modo como o
ingegnere encarava sua atividade: ele era um criador de puros-sangue de
competição. Desprezava novos-ricos, nobres, xeiques, astros de cinema,
caso desconfiasse que esse pessoal queria uma Ferrari por esnobismo, não
para satisfazer uma irresistível paixão. Se Enzo cismasse com alguém,
simplesmente não lhe dava atenção: para ter uma Ferrari do “engenheiro”,
o interessado tinha de provar o seu amor. Nessa época, portanto, ter uma
Ferrari era receber a chancela de Don Enzo, atestando que o sujeito
tinha um coração ardente. E isso, meu amigo, isso sim é que é prestígio.
Pois é a postura inflexível do seu criador o que mais me agrada em
toda a mítica que envolve a Ferrari. A personalidade de “quebra, mas não
verga” o fez sofrer dificuldades financeiras, a ponto de ser obrigado,
em 1969, a vender 90% de sua fábrica à Fiat. Como condição, manteve o
controle do seu haras de competições até sua morte. A partir do fim dos
anos 60, portanto, as Ferrari de rua perderam parte de sua aura, ao
menos pra mim: desde então, não há mais aqueles olhos duros, atrás de
lentes escuras, observando o candidato a entrar para o clã. Hoje, para
ter uma Ferrari, basta pagar.
Prazer que não tem preço
Se guiar uma Ferrari já é um privilégio,
pilotar uma 250 TR
igualzinha às que deram o Mundial de Marcas de 1958 à marca é um sonho.
Seria como ter passado uma noite com a Marilyn Monroe. E já que parte do
prazer deste tipo de aventura é contá-la para os amigos, vamos a ela.
Cá entre nós, o meu caso com esta voluptuosa diva vem de longe: é a
terceira vez, contando com este passeio no interior de Minas Gerais, que
a tenho nas mãos. A mais inesquecível delas foram algumas voltas rápidas
em Interlagos, no ano passado, logo após uma chuva torrencial. Vou
começar meu relato, portanto, por esta tarde em que, como disse, havia
chovido. O asfalto secava, soltava vapor, e a pista havia sido liberada
só para mim e para mais dois carros.
Puxo uma tira de couro e abro a leve porta de alumínio. Passo a perna
direita sob o grande volante e, com as mãos, me apóio na carroceria
atrás do banco. Escorrego para o assento. O encosto do banco é em ângulo
reto. Não há regulagem, a peça é fixa. O volante fica próximo e é bom
que seja assim, pois, com os braços flexionados encontro força para
manejá-lo. São duas voltas e um quarto de batente a batente – reações
rápidas. A alavanca de câmbio parte de um túnel alto. Seu pomo de
alumínio escovado está tão próximo do volante que, ao engatar a primeira
marcha, ele chega a 2 centímetros do aro de madeira. Isto permite
cambiar sem perda de tempo, o que é muito bom. A alavanca corre por uma
grelha, seu curso é curto, os engates são metálicos, precisos e duros.
São quatro longas marchas à frente. 
Liguei a chave de ignição e escutei a bomba elétrica de gasolina
enchendo as cubas dos seis Weber 38 de duplo corpo (“tic-tic-tic”).
Afundei a chave de encontro ao painel para acionar a partida, acelerei
fundo para injetar gasolina, e o motor pegou de pronto. E aí começou a
vibração. Os dois escapes soltam um rugido ardido e seco. São 3 litros
de capacidade cúbica, taxa alta de 9,8:1, comando forte, potência
específica de 103 cv/litro. O carro fica impaciente como um cavalo de
corrida que sai da baia. Isso nos atiça os nervos, dá ganas de acelerar.
Mas, calma, é cedo ainda. Antes temos que esquentar, entre 1.500 e 2.000
rpm, o enorme bloco V12 e os mais de 10 litros de óleo do cárter. A 250
TR tem cárter seco e, com isso, elimina-se o reservatório sob o motor.
Daí que o 12 cilindros pode ser assentado mais baixo, melhorando o
centro de gravidade. Outra vantagem é que o óleo é injetado diretamente
no sistema de lubrificação, o que nos permite fazer forte longas curvas
sem correr o risco de a bomba não pescar o óleo.
Diva contida
E como é gostoso curvar longo e forte
com esta máquina! Como é
prazeroso mantê-la contida, rédeas250 TR curtas em segunda marcha, no
começo da Curva do Sol. Ela fica impaciente, giro alto, fogosa,
sensível. O banco firme nos transmite dos rins às pernas o quanto temos
de aderência nas rodas traseiras, e informa que basta uma aceleradinha a
mais para que uma força brutal aflore com tudo, e aí a traseira
certamente se soltará.
Tenho de dosar, acelerar piano piano, e engatar a terceira no
primeiro terço da curva, mesmo sem ter atingido o giro máximo (a faixa
amarela começa aos 7.500 rpm e a vermelha, aos 8 mil), pois seria muita
potência jogada no chão. São 300 cavalos alucinados para arrebentar a
porteira e os pneus Engelbert são relativamente finos para os padrões
atuais.
A Reta Oposta já aparece no canto do olho esquerdo. Posso acelerar
mais forte, calculando que a leve desgarrada me levará à beirada da
grama. Um pouco antes de alinhar com a reta, aí sim, já posso acelerar
fundo. Ela segue o previsto, com o volante transmitindo fielmente às
minhas mãos o quanto os pneus dianteiros têm de aderência. A terceira
marcha é longa e cresce sem fim. O motor só vai dar conta dela lá pelo
meio da Reta Oposta.
O carro segue reto com a longa frente abrindo caminho. Puxo a quarta
e, pelo tanto que cai o giro, vejo que a Reta Oposta é curta pra ela.
Isto é marcha para o antigo Retão, quando já se saía lançado da antiga
Curva 2 e se atingia perto dos 300 km/h no final do percurso! Isto é
marcha para pilotar com a faca nos dentes e, de preferência, à noite,
numa perseguição maluca! Senti a diva espremida, mas ela segue para a
tomada da Curva do Lago. Mesmo assim, nessa retinha de comadre que
sobrou do nosso antigo autódromo, devo ter atingido uns 200 por hora.
Sinto um certo inconformismo, pois, como disse, o Interlagos atual é
apertado para ela. O bom seria ter espaço para ir mais fundo, quando
dizem que a frente fica leve, acima dos 260 por hora. A 200, a
brincadeira está só começando. 
A revolta do papa
Sei que esta Ferrari não é uma Testarossa original. Sei que é um
clone perfeito, montado na década de 1990, na Holanda, com mecânica e
peças originais do estoque de reposição de corrida da época. Chassi e
motor provêm de uma Ferrari 250 GT Boano 1958, e o motor, cujo bloco é o
mesmo de uma Testarossa, recebeu a mesma preparação das 250 TR.
Portanto, na prática, o carro é igual aos originais, em termos
mecânicos, estéticos e comportamentais. Carros desse tipo são chamados
de recriação e, de tão fiéis aos originais, são aceitos na Europa e nos
Estados Unidos em competições de clássicos. Das 21 originais que foram
fabricadas (duas para a equipe oficial e 19 para equipes particulares)
entre 1957 e 1958, tivemos duas no Brasil. Segundo Emílio Zambello,
atual presidente do Automóvel Clube, uma delas foi comprada da Scuderia
Ferrari, logo após os 1.000 km de Buenos Aires, em 1958.
Essas TR obtiveram várias vitórias por aqui, principalmente nas mãos
de Celso Lara Barberis e Jean Louis Lacerda. Uma foi reenviada à Europa,
onde atualmente participa de competições de clássicos. Outra foi
totalmente destruída em 1962 em Interlagos, entre as antigas Curvas 1 e
2, dividida ao meio por um eucalipto. Quem a pilotava era Fernando Mafra
Moreira, mais conhecido como Rio Negro, um piloto sem tanta experiência.
O carro era do piloto Agnaldo de Góes e Rio Negro entrou para dar só uma
volta. Mas parece que se empolgou e, ao invés de entrar nos boxes,
seguiu com o pelotão. Pagou com a vida poucas centenas de metros
adiante. Sabe-se que do carro sobrou apenas suspensão traseira, De Dion,
que depois foi montada na famosa carretera 18 de Camilo Cristópharo.

Em 1957, o Campeonato Mundial de Marcas passava por uma crise.
Ocorreram acidentes com dezenas de mortes na Le Mans de 1955 e na Mille
Miglia de 1957, o que causou certa revolta popular. O papa Pio XII
também se revoltou. Os organizadores resolveram então, de última hora,
baixar a potência dos motores, estipulando que para a temporada de 1958
a cilindrada máxima seria de 3 litros. Por sorte, Gioacchino Colombo
tinha pronto um novo V12 com essa cilindrada, e Scaglietti uma linda
carroceria, com inovadoras passagens de ar entre os pára-lamas e o cofre
do motor, para melhorar a ventilação dos freios a tambor (alguns carros
de competição da época já usavam freios a disco, como os Jaguar C e D
Type).
Portanto, com novo motor – cujas tampas dos cabeçotes foram pintadas
de vermelho, daí o testa rossa –, novo chassi tubular, bem rígido, nova
carroceria (suspensão traseira de ponte De Dion para os dois carros da
equipe de fábrica e de eixo rígido para as equipes particulares), a
Ferrari era a única que tinha um carro bem testado para a temporada de
1958. Seus rivais eram a já ultrapassada Maserati 300S, motor seis em
linha, dois comandos, e o Aston Martin DBR1, que sofria com sua frágil
caixa de câmbio.
A 250 TR já começou arrasando. Venceu as três primeiras corridas,
Buenos Aires, Sebring e Targa Florio, e aí vieram os 1.000 Km de
Nürburgring. A organização alemã impôs que a Ferrari deveria usar um
combustível de menor octanagem, o que obrigou os mecânicos a fazer
regulagens de última hora nas sete 250 TR que entraram. Não conseguiram
acertar os motores. Venceu um Aston Martin, porém, o segundo lugar
garantiu à Ferrari a vitória do campeonato. Faltavam as 24 Horas de Le
Mans. Stirling Moss, pilotando um Aston Martin, era o grande perigo.
Devido às altíssimas velocidades atingidas nesse circuito, nova
carroceria foi dada à 250 TR. Esta ficou conhecida como TR58.
Pininfarina a desenhou mais convencional, envolvendo toda a frente.
Perdeu em beleza, mas resolveu o problema da “frente leve”, que a nossa
tem acima de 260 km/h. Não deu outra, Phil Hill e Olivier Gendebien
venceram com 12 voltas (160 km) à frente do segundo colocado. Então, das
cinco provas do campeonato de 1958, as 250 TR venceram quatro. Nada mal.

As 250 TR voltaram a trazer ao criatório do engenheiro Enzo os
troféus de Le Mans e do campeonato, em 1960 e em 1961. Em 1962, os
protótipos, como as 250 TR, não mais contariam pontos no campeonato.
Essa batalha ficou para a 250 GTO, que praticamente é uma TR vestida de
grã-turismo. A GTO venceu... E até 1969, as Ferrari V12 de rua ainda
tinham em suas entranhas muito da 250 TR, daí que podemos chamá-la de
mãe das grandes, e mais apaixonantes Ferrari já construídas. Acho que se
Don Enzo visse minha cara quando desci da TR depois de percorrer o
traçado de Interlagos, ele certamente me carimbaria a testa com um
Cavallino Rampante. Meu problema, a partir daí, seria um só: sustentar a
diva. |