Era uma nevoenta e fria manhã do outono de 1948. Vários jornalistas
se aglomeravam na beira da
estrada da cidade de Jabbeke, no norte da Bélgica. A pista tinha sido
fechada para uma demonstração de
velocidade da Jaguar, pois na Inglaterra não havia reta tão longa e
plana. E a reta de Jabbeke era
famosa por acolher pilotos em busca de recordes de velocidade nos anos
40. Mãos nos bolsos dos casacos,
ansiosos, conversando e fumando, batiam com os pés no chão para se
esquentar enquanto esperavam. Aos
poucos, perceberam um rugido que provinha de onde a estrada sumia no
horizonte...
Todas as cabeças se viraram, mas só conseguiram visualizar um
crescente ponto no horizonte. Pela
oscilação do som, os mais experientes logo notaram que o rugido vinha de
um encorpado motor seis
cilindros em linha e que as trocas de marcha estavam sendo feitas por
quem entendia do assunto, pois
vinham sempre no mesmo intervalo, um pouco acima da rotação da potência
máxima. O piloto Ron “
Soapy” Sutton sabia o que estava fazendo.
Na quarta e última marcha, o rugido se fixou no tom de berro afi nado
que arrepiou os ouvintes. A
máquina foi tomando formas. Linhas suaves apareceram. Linhas
arredondadas e esguias, inteligentes,
aerodinâmicas, cujo perfil se abria e afunilava semelhante à forma da
gota. Em poucos segundos a
máquina passa rente aos pés da platéia... sschhwuuuff!... Alguns chapéus
voam, abas de casacos se
agitam com o vento e os cronômetros são cravados marcando 132 milhas por
hora (212,4 km/h) – 12 milhas
a mais que as 120 m/h previstas pela fábrica.

Expressões de espanto, vivas de alegria: o XK 120 era o mais veloz
carro produzido em série. Ele
atingia um patamar de velocidade até então apenas reservado aos carros
de corrida. É fato que o
roadster estava sem o pára-brisa e usava capota marítima fechando o
cockpit ao redor do piloto para
melhorar a penetração aerodinâmica (com o pára-brisa colocado ele
atingia 126 m/h). Mas era um carro de
série.
RÉDEAS DO DESTINO
Sutton fez a volta e tornou a passar
diante dos jornalistas. Desta vez a 25 km/h em
quarta marcha, quase em marcha lenta, com o motor sereno, mansinho, sem
engasgos, para depois sair
acelerando forte sem que a marcha fosse reduzida. E aí é que os
presentes ficaram mais estupefatos,
pois não lhes entrava na razão que um motor fosse capaz de tal façanha:
ter o rompante de um puro-
sangue e também a doçura de um carneirinho. Essas duas qualidades juntas
simplesmente não existiam. A
notícia se alastrou mundo afora: o XK 120 era o máximo, não só na
evidente beleza – que já havia sido
vista no seu lançamento em Londres, no Earls Court Motor Show – mas
também no desempenho.
O motor XK foi projetado para equipar o modelo saloon Mark IV. Mas
como o carro não ficaria pronto a
tempo de ser apresentado em Earls Court, William Lions, o dono da
Jaguar, em poucas semanas desenhou e
construiu um roadster só para atrair a atenção do público. O XK 120
nasceu para viver apenas 200
unidades, porém, tal qual um bom e raçudo puro-sangue, o modelo tomou as
rédeas de seu destino.

Sua mecânica é robusta e simples. Tão robusta que 24 anos depois
daquela manhã de outono em Jabbeke,
em 1972 lá estava eu – então um rapazote de 16 anos que adorava
velocidade e competia de kart –,
sozinho, acelerando meu XK 120 roadster ano 1952 a caminho de Poços de
Caldas (MG). Eu partira de nossa
fazenda, 100 quilômetros distante, nesta noite estrelada. Frio de
lascar, casaco grosso, capota de lona
erguida, nas portas iam janelas plásticas de cujas frestas penetravam
fios de ar gelado, calor do motor
esquentando minhas pernas, vários mostradores Smiths iluminando
vagamente o interior, velocímetro
oscilando entre 150 e 160 km/h, faróis de milha de luz amarela
iluminando a escuridão.
A essa velocidade, bastava uma cutucada no
acelerador que o motor respondia de
pronto, mostrando ter muita lenha para queimar, muita velocidade a
ganhar. Mas para uma viagem
tranqüila e estável em boas retas, 160 km/h era a tocada de cruzeiro. Já
na serra com suas curvas, o XK
exigia certos cuidados. Os freios não são bons, são lerdos em reagir e,
ao começar a curva sentimos a
frente do carro pesada com tendência a seguir reto. Um pouco antes que
ele perdesse aderência nos pneus
dianteiros, uma puxadinha rápida e bem dosada no volante para dentro da
curva jogava suficientemente a
traseira para fora para equilibrar o carro. Uma vez equilibrado, nas
saídas de curva eu tinha de domar
meus ímpetos, pois o motor é torcudo e reage de imediato. Uma acelerada
a mais, faria a traseira
desgarrar.

As retomadas nas pequenas retas entre uma curva e outra são
excelentes e excitantes, ainda mais em
uma subida de serra, pois o XK a galga como um animal selvagem. Não há
nada como nos sentarmos lá
atrás, quase raspando as costas no eixo traseiro, e ter uma longa frente
ondulada abrindo o caminho.
Nada como ser livre e ter um carro esporte nas mãos. Nada como lábios
doces e hálito fresco nos
esperando no topo da serra – e eis a justifi cativa para tanta pressa.
VELHO AMIGO
Tive o XK 120 por dois memoráveis anos, período em que o roadster me
ensinou a me entender com
carros de verdade, de espírito forte. Foi com ele também que pela
primeira vez belisquei os 200 km/h.
Lembro perfeitamente do ponteiro do seu velocímetro raspando a marca.
Esse era o seu máximo, mais ele
não ia: afinal, alguém tem de estabelecer limites a um adolescente. A
fábrica diz que o XK 120
acelerava de 0 a 100 km/h em 10 segundos.
Não vou dizer por quanto vendi o carro, para não ser esquartejado
pelos colegas da C/D. Mas adianto
que na época seu valor era menor que o de um Fuscão 1500...

E agora, mais 36 anos passados, volto a ter um XK 120 nas mãos –
desta vez, um excelente e raro XK
de 1949, o 55º das 240 primeiras unidades fabricadas. Todos esses
tiveram suas carrocerias em alumínio,
pois, como a Jaguar não esperava fabricar mais de 200 unidades, não era
justificável fazer prensas para
carrocerias de aço. Com a inesperada procura, principalmente dos Estados
Unidos e da Austrália, foram
providenciadas prensas, e a partir de abril de 1950 os XK 120 vinham com
carroceria de aço (capô e
portas continuavam de alumínio). Exatamente iguais nas linhas, pesavam
somente 25 quilos a mais.
Este das fotos tem lindas rodas raiadas
com borboletas de cubo rápido, item opcional
que além de serem mais rápidas para trocar, e mais leves, ventilam
melhor os freios a tambor. Peço ao
dono do carro que não me oriente sobre nada, pois apesar de tantos anos
passados não havia me esquecido
de nenhuma particularidade do XK. Quero ter o prazer de redescobrir
tudo sozinho. Viro a chave da
ignição, aperto a embreagem, coloco-o em ponto-morto na pequena e leve
alavanca de câmbio, que é
dobrada para a frente, de modo que ao engatarmos as marchas ímpares ela
quase fica na horizontal, e
aperto o botão de partida.
Virar o motorzão 6 cilindros, de 3,4 litros e um pesado virabrequim
apoiado em sete mancais é
trabalho árduo para o motor de arranque, que ronca (nrónc, nrónc). Ele é
assim mesmo, recordo. Acelero
um tiquinho e logo alguma faísca é bem-sucedida e põe o bichão de 160
cavalos para funcionar. Bah! Que
delícia! É como abraçar um grande amigo que não vemos há muito tempo.
Muita coisa se passou, mas
entre nós continua tudo igual.
VERMELHO SANGUE
Deixo o motor esquentar a 1.800 rpm. É um bocado de óleo para
esquentar. No cárter vão 11 litros, e
me recordo bem o quanto me esvaziava o bolso trocá-lo. O conta-giros, o
mostrador que está mais perto
de mim, sobe no sentido anti-horário e sua faixa vermelha inicia nas
5.500 rpm. O velocímetro fica na
extremidade direita. No meio do painel, nível do óleo, nível da
gasolina, temperatura da água,
temperatura do óleo, alternador...
Trabalhando na lenta, o motor XK não mostra a ferocidade de que é
capaz: é discreto. Porém, seu
consumo de combustível nem tanto. O meu queimava um litro de gasolina
azul (a Podium de hoje) a cada 6
quilômetros. Dois carburadores SU, dois comandos de válvulas no
cabeçote, taxa de compressão de 8:1.
Cabeçote de câmeras hemisféricas, de alumínio, vistoso, tal qual William
Lyons queria para impressionar
quem abrisse o capô (e impressiona!).

Piso na embreagem e naturalmente trago a alavanca de câmbio para
junto de mim, para depois empurrá-
la adiante: assim a ré está engatada. Os pedais são delgados, bem finos
e verticais, e suas hastes
penetram horizontalmente no guarda-fogo. O volante de grande raio está
próximo ao peito. Há uma
regulagem telescópica de sua distância, mas é assim mesmo que devemos
dirigi-lo para termos força, já
que o volante é pesado, do tempo em que carro esporte era para
esportistas, gente com brios e orgulho
de ter muque. Manobro e tiro o XK da garagem.
O sol banha sua cor vermelha. Meus olhos, ofuscados, aos poucos vão
delineando nessa confusão de
luzes os familiares contornos do longo capô. Seu vermelho vivo é como o
sangue que me borbulha nas
veias. Voltar ao assento de um XK é, para mim, como voltar aos ardores
da adolescência, quando o menino
começa a descobrir o mundo dos homens, dos seus prazeres e perigos mais
fortes.
Engato a primeira e saio para passear com o velho companheiro. Só da
segunda em diante as marchas
são sincronizadas, portanto, a primeira só é engatada quando estamos
praticamente parados. Nessa
marcha, a caixa de câmbio, no túnel ao lado da perna direita, produz
ronco de engrenagens,enquanto o
motor mais adiante ronrona grosso. De segunda em diante o ronco do
câmbio praticamente some.

Logo ali há uma pista e para lá vamos. É um pequeno circuito, meio
travado, onde o XK não pode
esticar seu galope, nem me marulhar aquele delicioso vento na cara.
Mesmo assim, aproveitando o
possível, concluo que eu tinha razão para adorar este carro, pois ele é
um companheiro bem -disposto
que não recusa diversão, sempre pronto para partir em busca de
aventuras. Depois de algumas voltas, era
hora de deixá-lo novamente na garagem, onde ele ficaria estático,
imóvel, lindo, brilhante. Mas
certamente triste.
Isso me incomodou, me deu um nó na garganta. No caminho, passo ao
lado do portão de saída para a
convidativa estrada. Talvez, se ainda tivesse meus 16 anos, nós
imediatamente fugiríamos por ali.
Porém, o tempo passou, o XK não mudou, mas eu sim. Então, segui reto.
Consolei-o, dizendo: “Nossa
história em comum, meu velho, ainda não acabou. Juntos, ainda vamos
aprontar o diabo!”
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